sábado, 28 de agosto de 2010

a fera e as feras

dizia-se que em um pequeno vilarejo um homem vivia a caçar o que ele chamava de feras. dinossauros, bichos da tasmânia, rinocerontes, raposas do hymalaia, suas preferidas. todo tipo que, por sua dimensão, ferocidade e feiura, já estavam em extinção. este homem obcecado, possuía todas as armas e armadilhas para suas presas. olha que não eram deste século mas medievais. maças, martelos, manguais, arapulcas, atiradores de pedra (catapultas), espadas, lanças, cavalos encilhados e preparados, armaduras . até parecia um cavalheiro medieval. quem o via, de longe, pensava que era. mas ao se aproximar se deparava com um homem já velho com suas armaduras carcomidas pelo tempo. mas ele insistia em caçar. estas feras, geralmente maiores que ele, davam muito trabalho! engraçado que mais do que uma verdade ele se tornou uma lenda. porque na realidade nunca ninguém vira suas caças tombadas. mas de boca em boca corria a fama. ele de armas em punho saía a caçar, a qualquer hora. esse era o seu maior prazer. diziam que, caçada a presa, ele até se compadecia por algum tempo. mas, passado o tempo pequeno do "mea culpa", a presa nada mais era do que um animal para exposição e afirmação de um poder que ele sentia já estar minguando. estes animais não se encontravam em qualquer lugar. era necessário percorrer muitos caminhos. lugarejos remotos. montanhas. entrar em cavernas escuras. para isto ele era destemido. nada o detinha. de armadura e armas em punho, diziam, ele se dirigia ao local da caçada a qualquer hora do dia. a qualquer temperatura. fizesse chuva ou sol lá estava a caminhar em direção a sua presa. ora! por que escolhera esta vida? não sabiam os demais. alguns diziam que ele carregava dentro de si monstros. muitos. um exército deles. estes, geralmente em posição militar, o incomodavam todas as noites lhe trazendo pesadelos horríveis. anos disto criou no homem velho, um perfil. meio lunático, esquizóide, ermitão, esquisito, anti social. nunca amara. nunca tivera experiências lúdicas. nunca vira por de sóis ou fizera amor até o amanhecer. dizem que isolado, calculava dia e noite, dia a dia, ano a ano, sua próxima empreitada. construía armadilhas, polia suas armas, alimentava os cavalos e saía a qualquer hora. como sabia da existência e aonde estavam os animais, não se sabia ao certo. ele era um pesquisador. bom pesquisador. diziam que no seu castelo havia máquinas modernas e equipadas de radares capazes de encontrar um animal nos mais recôntidos cantos da terra. este homem não era bem visto no lugarejo. na realidade de tanto caçar este tipo de animal, de conviver em pensamento com eles, tornou-se similar. era ele mesmo a caça que caçava. era ele mesmo o animal que procurava. era ele mesmo diziam os mais sábios! de fora, viam nele estampado os animais que caçava. os animais caçados, por sua vez, pouco a pouco, passaram a sentir por seu algoz algo familiar. começaram a se identificar com ele. assim como muitas vezes o torturado estabelece um laço afetivo com o seu torturador. com o tempo e a velhice chegando este homem foi se dando conta disto. ao caçar a fera, a mesma se afeiçoava a ele. isto o perturbava. afinal, afeição só poderia existir se houvesse uma similaridade. ele era um homem inteligente mas negava sua própria condição de fera! dizem que certa vez levara ao castelo um animal da tasmânia. assustado se deu conta de que não havia um enfrentamento. uma luta. ou tentativa de fuga. o animal, feroz, permaneceu passivo e quieto aos seus pés. com um olhar até mesmo doce para aquele cavalheiro decaído. ele não aceitava. tinha que haver o combate, a provocação, o enfrentamento. assim poderia usar suas armas fatais. não o agradava desferir um golpe num ser passivo, resignado e quase amorosamente relacionado. isso tirava todo o poder e símbolo de força do ato de caçar e do caçador. mas dizem que repetidamente os animais se identificavam com o homem. e, fantasticamente, os habitantes começaram a presenciar uma caminhada freqüente de animais exóticos e assustadores em direção ao castelo. as feras caçadas começaram a ir em direção ao caçador. resignadamente. passivamente. mansamente. o homem, enlouquecido, desferia golpes por todos os lados. algumas feras tombavam. mas como eram a maioria, a andança prosseguia sem que ele, racionalmente, se desse conta do que ocorria de fato. dizem alguns que se ouviram berros vindos do castelo por muito tempo. os habitantes contam que nunca mais viram o homem com armadura e armas em punho a caçar. dizem que as feras rondavam o castelo dia e noite. e, aprisionado, o caçador virou a caça. fruto de uma identificação doentia talvez. ninguém explicava. e este fato se tornou uma lenda, até mesmo uma atração para o lugarejo. alguns contam que por anos. o homem trancafiado e as feras ao redor. dinossauros. bichos da tasmânia. rinocerontes, raposas do hymalaia, muitas delas, entre outros. até que numa tarde de agosto viram um cortejo seguir caminho abaixo. o que restara do homem caçador era levado pelas feras obedientemente enfileiradas para o cemitério mais longe da cidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário