mulher avon
levantou bem mais cedo do que de costume. o ar da manhã transpirava. algo novo refletia nos vidros da sala embaçados da serração que encobrira a noite. como se sentia igual. igual a todos que indiferentes levantam sempre as mesmas horas cumprindo um ritual habitual. desta vez estava na corrente. a favor, sentia-se mais leve. até mesmo colocou as roupas na máquina. ajeitou a louça na pia. odorizou o ambiente, cheiro lavanda. mais uma vez aproximou-se das janelas abrindo uma a uma. devagar. assim via nos comerciais da tv. impressionada com toda aquela leveza fake. mas o mundo todo é fake. desta vez não, pensou. colocou a mesa do café. sentou e tomou gole a gole. café pausado. o ritmo era lento e quase feliz. os pássaros cantavam para ela. nunca acordara junto com todos. era sempre a última. sem saber às vezes se era ela ou o mundo que dormia. ou assim se sentia já que o mundo acordava enquanto ela adormecia. não sabia. também, não importava. andou passo a passo de um lado ao outro do apartamento. ajeitou aqui, ali. cada objeto posicionado no seu lugar. as almofadas sobre o sofá, as persianas levantadas, o vidro da mesa da sala de estar, limpo. o mundo lhe parecia tão perfeito naquele dia! sem gritos, sem buzinas de carros, sem congestionamentos, sem más notícias, sem lembranças. era quase um silêncio. da sua alma? não saberia dizer. as horas passavam lentas sem que se incomodasse. ouvia até mesmo os vizinhos baterem portas, fecharem, sussurrarem nos seus trajetos automáticos a caminho do dia a dia sempre igual. abriu um livro, fechou, abriu a geladeira e olhou o que faltava. ah! cor. falta cor. providenciou imediatamente. ao telefone... laranjas, tomates, brócolis, rabanetes... nada a perturbava, nem seus pensamentos. o fogão a espera do meio dia. do almoço. da frigideira, das panelas, das chamas acesas. uma música vinha de longe assim como o som do trabalho braçal dos prédios que se erguiam entre paredes agonizantes de espaços cada vez menores. não, não quis pensar. afastou a idéia que lhe vinha da cidade asfixiada. hoje não. tudo tinha uma nova dimensão. como se espaços virassem verdadeiros céus abertos. uma brisa mansa invadia os cantos dos cômodos sem pedir licença, não a incomodava também. abriu o note e resolveu escrever uma bela frase, daquelas que todos os alegres de plantão costumam escrever. sem pensar, postou. tão simples ser igual pensou. acordar em paz, sorrindo cumprir as obrigações diárias, ver o que falta. porque quando a maioria se levanta, não ve o que tem, mas o que falta. e sai às ruas para comprar desejos. pegou caneta e papel. anotou alguns itens, irrelevantes para uma lista do que falta. mas o gesto em si era de uma dimensão aos olhos dela, imensurável. fazer a listinha matinal conferia-lhe um status de igualdade sem prescedentes. sim, se sabia igual naquele dia. comum, rotineira, sonâmbula e feliz. inconsciente mas móvel, prática e funcional. até mesmo antevia os lugares aonde ir, a loja certa, o supermercado certo, as ruas e os trajetos mais eficientes para chegar a hora de fazer o almoço. ensaiou um passo, dois passos até ao armário. escolhendo a roupa mais leve, inclusive aquela écharpe que sempre vira nos filmes a voar com o toque do vento, nos pescoços de belas mulheres e perfeitas. tinha uma. colocou em volta de si olhando no espelho. a bolsa, na cadeira, parecia esperar. ai como era bom ser como todos! foi ao banho. saindo perfumada e saltitante. até saltitou. ensaiou cantar uma melodia. pensou em alguma que não falasse de maldades. algo clean. lembrou do filme cantando na chuva. sorria. naquela manhã o dia estava feliz. prometeu a si que não falaria da dor alheia, que não ouviria o noticiário, que não mal diria o mundo em que nascera. tudo estaria perfeito como todos sempre diziam. vida bela bela vida! em um minuto se via pronta. estou pronta pensou. pronta para a vida de todos. pronta para sorrir mecanicamente forjando a dor que deveras sentia. não, não. não podia pensar. a manada quando anda não pensa. se um dominó resolve dar para trás, ou pra frente, todos os outros caem. não, não seria essa pecinha do dominó. colocou os sapatos de salto. não muito altos apesar de lhe vir à memória aquele som peculiar do toc toc toc nas calçadas matinais. olhou-se ao espelho e viu refletida a imgem de uma vendedora da avon. sorriu sem ironia. ao menos tentou. ou ainda, refletida no espelho estava uma cidadã comum, igual a todos, inquestionavelmente igual. isto lhe trazia um prazer, um descompromisso, uma certa vontade até mesmo de dançar. não, não ousou fazê-lo, ao menos naquele dia, ainda era muito cedo para tanto. a normatização levava anos e ela faria tudo em um dia? não, pensou, devagar! deu uma voltinha e se achou bela como nos manuais de auto ajuda e repetiu de si para consigo mesma, sou linda! maravilhosa! a melhor! com aquele ar de contentamento de quem achara o portal da felicidade. aproximou-se da bolsa. não sem antes pensar. bolsa de mulher. ah! batom, perfume, coisas e coisas. poque bolsa de mulher tem que ter coisas. abriu uma gaveta de coisas e colocou-as na bolsa, pronto. de repente veio à memória algo que sua avó sempre dizia, sua mãe também... um batonzinho! passa um batonzinho. esse era o toque mágico. o batonzinho parecia ter o poder de transformar o feio em belo em segundos. com a promessa de que todos os olhares seriam atraídos a esse objeto de desejo. ai que satisfação. quando poderia imaginar que estaria assim tão igual, quase em sintonia com seu mundo, com as pessoas, com a rotina estabelecida. sem pensar, foi ao banheiro novamente e pegou o mais vermelho, era moda. passou. algo se destacou no seu rosto. desta vez, silenciosa de protestos em vão. sua boca era agora um objeto colorido. quem sabe desejado! não continha em si a satisfação de mais este gesto incorporado tão rapidamente naquele dia. foi à sala e pegou a bolsa novamente não antes de colocar o batom dentro. pegou as chaves do carro. aproximou-se da porta para abri-la. olhou mais uma vez em volta com aquele ar de contentamento de ver tudo tão certinho, tão nos seus lugares, tão em ordem. colocou a chave na porta e girou...girou...girou... e...caiu do salto! escorregou. espatifou-se. foi- se ao ar. ao chão. bolsa, batom, chaves, perfume se misturavam a um sentimento intenso, real? ar, brisa, canto, pássaros, leveza, dança, écharpe, bolsa, batom, chaves, lista, saltos foram aspirados com uma força inimaginável para um ralo que se abriu no lugar do elevador. ela segurou forte na borda para não ir pelo ralo... segurou...segurou... se agarrou ao último fio de céu azul, em vão, antes de descer ralo abaixo.
...
o mundo girou de repente! acordou assustada, ofegante. coração acelerado, tivera um pesadelo? olhou em volta. na penumbra do quarto visualizava as persianas fechadas. as almofadas no chão. não, não fora real, sonhara. ajeitou as cobertas. virou para o lado. o mundo ainda dorme ou eu que durmo? sem pensar mais fechou os olhos a espera que o mundo acordasse! é, deixe que o mundo acorde ou eu descerei na próxima estação. não sei, hoje de nada sei. talvez a mulher da avon soubesse mais que eu.
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